No ano de 1994 durante a realização da copa do mundo de futebol nos Estados Unidos, eu, um estudante de graduação em Educação Física realizava uma pesquisa sobre a cultura de movimento em assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no interior do Estado de Santa Catarina. Os jogos da copa do mundo eu escutei no rádio com exceção da final que assisti na única televisão do Assentamento São José. Mas confesso que não foi a conquista da copa do mundo de futebol pela selação brasileira que me marcou nesse momento, e sim, o futebol de potreiro praticado pelos assentados.
No assentamento São José, o futebol era jogado onde tivesse um pedaço de grama, o fato de ser plano não interessava, visto que o assentamento ficava no meio de um vale com terreno acidentado. O jogo não tem hora pra começar e nem pra acabar, pois começa quando tiver até 2 jogadores e vai até o último jogador ir embora. Ocorrem muitas substituições, pois chegam jogadores, outros têm que ir fazer uma atividade e logo voltam, e ainda outros no meio do jogo vão almoçar e logo retornar, etc.. mas o jogo não para.
Improvisando bolas, goleiras, dimensão, etc. todos jogam de pés descalços e em um dos campos há um rio, onde , de vez em quando, a bola acaba parando dentro dele. A faixa etária dos jogadores vai de 5 a 60 anos e vira uma grande festa pois era um dos únicos momentos de lazer dos homens no assentamento.
Num domingo pela manhã foi marcado um jogo dos casados contra os solteiros, onde valia um risoto e a equipe que perdesse organizava e logo pagava (digo, um levava a galinha outro o arroz, etc.) a festa. O jogo começou as nove horas da manhã com dois tempos de 45 minutos como acabou empatado, teve uma prorrogação de 30 minutos que também acabou empatado. A disputa foi para os pênaltis onde todos os jogares bateram, e olha que eram muitos! O jogo acabou depois de 4 horas, pra mim foram 4 horas, mas pra eles o tempo não importava muito.
Como estudante de Educação Física com conhecimentos sobre o futebol e suas regras e inspirado no texto As Regras do Futebol de Rua de Érico Veríssimo, descrevo aqui como seriam as regras desse futebol.
AS REGRAS DO FUTEBOL DE POTREIRO
O QUE É: O futebol de potreiro é o futebol jogado na mesma grama onde estão as criações (boi, vacas, cavalos, bodes, etc.) do assentamento. Geralmente jogado, nos finais de semana (depois do culto) ou em dias de chuva, quando não é possível ir a roça.
DA BOLA: Esta pode ser qualquer coisa que role ou possa ser chutada, até uma bola de futebol serve. Em casos de urgência, usa-se bosta da vaca (neste caso deve estar seca, senão vai feder e fica difícil a marcação do colega) ou a própria vaca; uma pedra, aí recomenda-se usar um calçado, o “kichute” é o mais adequado, ou ao chutar recomenda-se usar a parte inferior do pé; não se aconselha pedras fixas, pois estas não podem se deslocar. O chinelo ou tênis do colega que foi roubar laranja no vizinho e, em clássicos de domingo, depois do culto, pode-se usar a meia, mais conhecida como carpin, que com a camisa domingueira dentro dá uma ótima bola, ou a bola do perna-de-pau da comunidade, presente do natal passado, que a única forma dele jogar, como dono da bola, (neste caso recomenda-se que o dono da bola jogue no melhor time).
DAS TRAVES: Estas poderão ser construídas com o que estiver na mão; pedra, chinelo, sapato, tênis, bosta da vaca, as cuecas molhadas do banho de rio colocadas pra secar e, em últimos casos, se pega emprestada um poste da cerca do próprio potreiro. A distância é um problema a ser resolvido “amigavelmente” entre as equipes.
DO CAMPO: Este, de preferência, o potreiro planinho do vizinho, sem rosetas e sem a vaca braba. Mas na falta, qualquer coisa serve, até a lomba do potreiro do vizinho com rosetas, vaca brava e o chato do filho do dono que quer jogar senão chama o pai.
DA DURAÇÃO DO JOGO: Até a mãe chamar, escurecer ou aquele que chegar primeiro. Também pode ser interrompido quando o dono do potreiro correr todo mundo, por estar virando lama, já ter matado toda a grama e as vacas estiverem perdendo peso, pois não tem mais grama para pastar.
DA FORMAÇÃO DAS EQUIPES: De um, até chegar a galera toda. Nos campeonatos que exigem uma maior rigorosidade na formação de equipes, devem ser respeitados alguns critérios: o dono da bola sempre joga no melhor time, o perneta na ponta direita ou esquerda dependendo de qual perna é manco, o gordinho no gol, o chorão no ataque, o bruta monte, arranca toco na defesa e o mais habilidoso sempre será o camisa 10 e jogará no meio do campo.
DAS INTERRUPÇÕES: A) quando a bola ficar estacada na cerca, neste caso pede-se para o dono da bola retirá-la. B) quando o dono da bola for embora, neste caso usa-se vários métodos para garantir a continuidade do jogo com a permanência da bola, desde balas, suspiros, convites para ir pra tua casa, sorvetes e, se nada adiantar, aí parte prá grosseria mesmo. C) se o dono do potreiro correr todo mundo. D) se passar aquela turma de meninas da comunidade para ir tomar banho de rio; neste caso a partida está suspensa por tempo indeterminado.
DAS SUBSTITUIÇÕES: a) em caso de almoço; b) em caso de chifrada do boi; c) em caso de atletas serem carregados pela orelha para casa; neste caso não é permitido risadas dos colegas pois na próxima vez pode acontecer contigo e, d) em casos de espancamentos.
DO INTERVALO: Que intervalo ??
DAS PENALIDADES: Só é considerada falta quando o companheiro for lançado fora do potreiro ou em cima da cerca farpada.
DA JUSTIÇA ESPORTIVA: Os casos omissos serão resolvidos no tapa.
Muito bom Guego!! Estou aqui dando risadas ainda! :D
ResponderExcluir